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A Amazônia não é nossa

Eliane Brum

El País, 02/10/2017

O governo Temer e a bancada ruralista do Congresso estão empenhados em transformar a maior floresta tropical do mundo em propriedade privada de poucos

Foto aérea sobre a Terra do Meio, no Pará, hoje ameaçada pela grilagem Lilo Clareto/Arquivo Pessoal

A mobilização que levou Michel Temer (PMDB) a reverter a decisão de abrir a Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca) para a exploração de mineradoras mostra que a Amazônia segue com forte poder simbólico no imaginário dos brasileiros. É também pelo desmatamento da Amazônia que Temer tem apanhado no exterior e tropeçado nos números, cometendo uma gafe atrás da outra. É bastante significativo que as principais derrotas simbólicas do grupo que hoje ocupa o poder executivo e domina o legislativo no Brasil estejam relacionadas à Amazônia. Mas é fundamental perceber que nenhum destes constrangimentos, dentro ou fora do país, estancou o processo concreto e acelerado de privatização das terras públicas na maior floresta tropical do planeta nem freou a crescente violência contra camponeses e povos tradicionais. Para compreender o que acontece na Amazônia hoje é necessário não apenas o famoso “follow the money” (“siga o dinheiro”), mas também outro movimento: siga o sangue.

Desde que Temer está no poder, há um assassinato por conflito de terra a cada seis dias na Amazônia Legal

Desde que Dilma Rousseff (PT) foi tirada da presidência por um impeachment sem base legal, 76 pessoas foram assassinadas na Amazônia por conflitos de terra. A violência na região já era alta no governo de Rousseff e piorou muito e aceleradamente no governo Temer. Em 2016, houve 48 homicídios: 19 no governo Rousseff e 29 no governo Temer. No país inteiro, ocorreram 61 mortes por conflitos agrários. Em 2017, já são 47 assassinatos na Amazônia e 59 no país inteiro. Neste ano, o Pará é o líder em mortes por conflito de terra, com 18 assassinatos, seguido de perto por Rondônia, com 15. Desde que Temer assumiu o poder, há um assassinato por disputa de terras a cada seis dias na Amazônia Legal. E a tendência é de crescimento. Os números são do Atlas de Conflitos na Amazônia, que acaba de ser lançado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pela Rede Eclesial Pan-Amazônia (REPAM).

Para quem atua na Amazônia, a tensão é algo que quase se pode tocar. O momento se assemelha muito ao início dos anos 2000, quando várias lideranças foram executadas pelo que se chama na região de “consórcio da morte”, culminando com o assassinato da missionária Dorothy Stang, em 2005. É importante ter muito claro que, quando Brasília emite sinais de que a bancada ruralista domina o governo, o crescimento da violência é imediato na Amazônia.

Siga o sangue: os assassinatos estão diretamente ligados à conversão da floresta em propriedade privada

No sudoeste do Pará, a grilagem avança sobre o corredor de áreas protegidas das bacias do Xingu e do Tapajós, incluindo as reservas extrativistas da Terra do Meio. Os avisos de lideranças de que o “consórcio da morte” se rearticula e age com cada vez mais desenvoltura chegam de todos os cantos. E os órgãos que deveria reprimi-lo, como Polícia Federal e IBAMA, dão respostas lentas ou nenhuma, tornando os mais frágeis ainda mais desprotegidos. A situação é cada vez mais explosiva. E que ninguém finja não saber disso nos dias que virão.

Se as mortes de camponeses, indígenas, quilombolas e ribeirinhos soam distantes para quem mora no centro-sul, é preciso compreender que as razões pelas quais estas pessoas são executadas estão bem perto. E o impacto tanto de sua resistência quanto de seu apagamento diz respeito à qualidade de vida de cada um. E não só no Brasil, mas no planeta. É preciso compreender como estas mortes estão diretamente ligadas a algo grave e definidor do futuro: a conversão da floresta amazônica em propriedade privada.

Desde o final do governo Lula, a “ilegalidade” vem sendo convertida em “irregularidade”

Se a conversão de terras públicas em terras privadas vem acontecendo na Amazônia desde o século 19, o processo ganhou maior sofisticação a partir do final da primeira década dos anos 2000 e, neste momento, avança com uma velocidade estonteante. Para compreendê-lo, vale a pena se debruçar sobre um livro lançado neste ano e acessível a todos na internet: “Dono é quem desmata” – conexões entre grilagem e desmatamento no sudoeste paraense. Nele, os autores Mauricio Torres, Juan Doblas e Daniela Fernandes Alarcon mostram como a “ilegalidade” foi convertida em “irregularidade”. E, assim, o “combate à grilagem” tornou-se o esforço pela “regularização fundiária”, o que quase matou de alegria os grileiros da Amazônia, atores influentes em Brasília.

O processo é sofisticado, a troca de palavras é sutil. Grilagem é a apropriação fraudulenta de terras públicas por indivíduos ou empresas privadas. É crime, portanto. O que pertencia ao Brasil é tomado, em geral pela força, por um indivíduo ou um grupo de indivíduos ou uma empresa. Historicamente, esse roubo de terras públicas era “esquentado” com títulos falsos, obtidos numa intrincada cadeia na qual estavam envolvidos donos de cartórios. Hoje, isso quase não é necessário. Como mostram os pesquisadores, as ilegalidades criam leis, que por sua vez criam novas ilegalidades. O acúmulo de crimes ambientais gerou anistias, que incentivam novos ilícitos, com a certeza de que contarão com novas anistias.

E há muito mais projetos de lei para legalizar o crime na pauta do Congresso, dominado pela chamada “bancada ruralista”. Sempre vale repetir: quando se menciona “bancada ruralista”, não se trata dos produtores rurais que botam comida na mesa da população nem do agronegócio que usa tecnologia para melhorar a produtividade, mas das velhas oligarquias que marcam a história do Brasil, aquelas que só sabem acumular riqueza expandindo-se e apropriando-se do que é público. Produtores rurais sérios, conectados com os avanços tecnológicos e preocupados com os efeitos da mudança climática sobre a produção, não fazem parte dessa turma.

Há uma conexão direta entre grilagem, desmatamento e mortes por conflitos de terra na Amazônia. Do mesmo modo, onde há grilagem e desmatamento há trabalho análogo à escravidão. É este Brasil que se expande na Amazônia neste momento. O mais atrasado, o que funciona a motosserra, bala e escravidão. Era esta a “ponte para o futuro” de que falavam os grupos que levaram o Brasil aos dias atuais.

“Eu discordo de que o desmatamento é gerado pela soja ou pela pecuária. Ele é gerado pela grilagem”, diz pesquisador

“Dono é quem desmata”, o título do livro, refere-se à declaração de um grileiro de Novo Progresso, uma das regiões de maior conflito do Pará. E ele sabe o que diz. A pesquisa mostra que a terra desmatada chega a valer 20 vezes mais do que uma equivalente coberta de floresta. Isso em média. Os autores encontraram casos em que a terra tinha valorizado até 200 vezes. Grilar e desmatar e vender é o grande negócio. “Eu discordo de que o desmatamento é gerado pela soja ou pela pecuária. Ele é gerado pela grilagem”, afirmou Mauricio Torres, doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP) e um dos maiores conhecedores dos conflitos de terra no estado do Pará, durante um evento para discutir a degradação da floresta realizado em Altamira em 29 de setembro. “Quem desmata, em geral não tem uma cabeça de boi, nem nunca criou um bezerro ou plantou um grão de soja. Depois é que vai servir para isso. O desmatamento anda junto com o preço da terra.”

A conversão do “ilegal” em “irregular” acentuou-se ainda no governo Lula, onde começaram a ficar claras as alianças com a bancada ruralista, que ficaram ainda mais íntimas no governo de Dilma Rousseff e se tornaram siamesas com Michel Temer. Alguns personagens do PT que hoje bradam contra a entrega da Amazônia eram bem ativos nesse processo até ontem. Mas sempre se pode contar com a amnésia coletiva no país da desmemória. Ou com aqueles que pensam que nunca é a hora certa de criticar o PT. Estes também se esquecem rapidamente de quem morre por ação ou inação. Precisam explicar por que não é a hora certa para os familiares dos mortos.

O programa Terra Legal é citado em livro como marco no processo de legalização da grilagem na Amazônia

O programa Terra Legal, de 2009, ainda no governo Lula, é citado pelos autores como um marco no processo de legalização da grilagem na Amazônia. Ele foi instituído pela Medida Provisória 458, sancionada na forma da lei 11.952. Entre outras ações, regularizava todos os imóveis com até 1.500 hectares em terras públicas na Amazônia Legal, com ocupações anteriores a dezembro de 2004. No discurso, o programa serviria para regularizar a situação dos pequenos posseiros, aqueles que viviam na terra e viviam da terra. Na prática, o programa serviu – e os autores defendem que foi pensado para isso – para regularizar a grilagem praticada pelos grandes. Na época, foi apelidado de “MP da Grilagem” e, depois, de “Lei da Grilagem”.

Os números ajudam a clarear os objetivos: os pequenos eram quase 90%, mas ocupavam menos de 19% do território; já os grandes eram menos de 6%, mas ocupavam 63% do território. Para os pequenos, a lei já existente era capaz de solucionar a situação e corrigir injustiças. Não era necessário criar nada novo. Assim, afirma Torres, o programa Terra Legal foi pensado para legalizar a grilagem. Ariovaldo Umbelino de Oliveira, professor da USP e um dos principais estudiosos da questão agrária no Brasil, afirmou, referindo-se à lei: “O ano de 2009 entrará para a história da origem da propriedade privada capitalista da terra no Brasil como entrou a lei de terras de 1850”.

Como exemplo da situação naquele momento, o pesquisador Mauricio Torres relata: “Em 2009, o município de São Félix do Xingu, no Pará, que possui uma extensão de 8,4 milhões de hectares, contabilizava registros de títulos que somavam mais de 28,5 milhões de hectares de propriedades. Por essa conta, São Félix do Xingu teria três “andares”. Um edifício modesto, se levarmos em conta a existência de casos bem piores, como o de Vitória do Xingu, também no Pará, onde os títulos de propriedades registrados somavam centenas de vezes a extensão do município”.

O pesquisador faz uma comparação para explicar o impacto do programa Terra Legal: “Se você tem um carro sem documentos, você está irregular, mas o carro é seu. Mas se você tem um carro roubado, é ilegal, não dá para regularizar um carro roubado”. Com a desculpa de regularizar os pequenos, os que realmente estavam irregulares, o Terra Legal teria legalizado o crime praticado pelos grandes. Se a história do Brasil é também uma sucessão de iniciativas para regularizar a grilagem, o Terra Legal inaugura uma série de legislações que tornaram esse processo muito mais sofisticado e insidioso. Basicamente, consuma uma perversão também na linguagem: o que era “ilegal” se torna “irregular”, o que muda tudo.

Dali em diante, o grileiro “vai tecendo relações legítimas a partir de algo ilegítimo”. Não é preciso cometer mais crimes, como produzir documentos falsos, para legitimar a terra pilhada. Tudo isso pode ser feito dentro da lei. Os documentos agora são “legais”. O novo e controverso Código Florestal, de 2012, cuja constitucionalidade deverá ser julgada em breve pelo Supremo Tribunal Federal, aprimorou ainda mais produção de legalidade onde antes havia crime.

No livro “Dono é quem desmata”, autores afirmam que o Cadastro Ambiental Rural se tornou mais uma ferramenta da grilagem

Os autores fazem uma crítica contundente ao Cadastro Ambiental Rural (CAR), instituído pelo novo Código Florestal, contrariando muitos que o veem como um instrumento importante de gestão ambiental. O cadastro, segundo Torres, teria a intenção de integrar ao imóvel as informações referentes aos parâmetros ambientais, “zoneando” as áreas de preservação permanente, reservas legais e outras. Mas, da forma como é feito, o ato do cadastro teria se tornado um instrumento de apropriação ilegal de terras. Documento declaratório, cujas informações inicialmente fornecidas são de responsabilidade do suposto proprietário, o cadastro tem sido utilizado como instrumento de comprovação de posse, tornando-se mais uma ferramenta da grilagem.

O cruzamento de dados de desmatamento, Terra legal e CAR, somados a dados de campo, segundo o pesquisador, apontam a falência desses mecanismos também na questão ambiental. Na Operação Castanheira, coordenada pelo Ministério Público Federal, Polícia Federal, IBAMA e Receita Federal em 2014, foi divulgado um áudio de interceptação telefônica autorizada pela justiça. No diálogo entre o grileiro e um interessado na compra de terras, o CAR aparece em resposta à demanda de documentação da terra: “E a documentação lá, como funciona? Tem escritura ou é tudo na base do contrato? A maioria ainda não é escritura. Tem uma sequência de documentos. Tem lá o CAR, que é o Cadastro Ambiental Rural, pra você poder por gado pra dentro, pra você ter guia de trânsito de animais e tal. Aí você pode pedir o título da terra. Aguarda um tempo que o documento sai”.

Para exemplificar como Terra Legal e CAR impactam a realidade cotidiana na Amazônia Legal, os pesquisadores reproduzem um anúncio de 2016, na internet, em que uma fazenda de 100 mil hectares no município paraense de Jacareacanga é oferecida. O vendedor oferta terras públicas com uma dimensão 50 vezes maior do que o limite constitucional para aquisição de terras da União sem autorização do Congresso Nacional. E o faz nos seguintes termos: “É uma área de posse mansa e pacífica e está sendo feito o Geo (georreferenciamento) para na sequência fazer o CAR, requerer o título definitivo e consequente escritura definitiva. Está sendo feito o desmembramento da área de até 1.500 hectares no projeto Terra Legal”.

A Lei da Grilagem 2, de Temer, ampliou e piorou a Lei da Grilagem 1, de Lula: com ela, o atual governo transformou grileiros em “cidadãos de bem”

Com Michel Temer e aquele que é possivelmente o Congresso mais corrupto da história recente do país, o processo se aprimorou e acelerou. A lei 13.465/17, nascida da Medida Provisória 759, foi sancionada em julho deste ano pelo presidente duas vezes denunciado por corrupção. É conhecida como “Lei da Grilagem”, porque é exatamente isso que é. Com a desculpa de “regularizar” a situação de pessoas que muitos anos atrás ocuparam áreas públicas “de boa fé”, para viver nela, a lei permitiu que grileiros que ocuparam terras públicas sabendo que eram públicas até 2011 – ou seja, ontem – possam “regularizar” seus “grilos” até 2.500 hectares, uma área equivalente a 57 Vaticanos. Basta expandir a produção de “laranjas” e os grilos são legalizados de 2.500 em 2.500 hectares. Neste ato “legal”, Temer e o Congresso anistiaram grileiros. Não só os anistiaram, como converteram criminosos em “cidadãos de bem”, totalmente dentro da lei.

O curioso é que a lei de 2009 era conhecida como “Lei da Grilagem” – e a lei de 2017 também é conhecida como “Lei da Grilagem”. O PT estava no poder na primeira – e hoje o PT contesta judicialmente a segunda. Mas o que a Lei da Grilagem número dois fez foi abrir ainda mais a porteira já aberta pela Lei da Grilagem número um: passou de 1.500 para 2.500 a quantidade de hectares passíveis de “regularização” e estendeu de 2004 para 2011 o ano de “ocupação”. Não é que o Brasil tenha problemas com a memória passada. O país está sofrendo de perda de memória recente.

Na política para a Amazônia, o que se vê após o impeachment de Dilma Rousseff é continuidade e não rompimento, ao contrário de outros setores, como saúde e educação. Continuidade com muito menos pudor e de forma muito mais acelerada, mas ainda assim continuidade. É importante perceber ainda como os projetos de lei que legalizam a grilagem correm rápido, praticamente voam, enquanto as demarcações de terras indígenas e a criação de unidades de conservação estão paralisadas ou retrocedem.

Os grileiros e o latifúndio estão sendo fortalecidos – e os povos tradicionais, justamente os que não veem a terra como propriedade, mas como reprodução da vida, estão sendo fragilizados. Isso é obviamente a escolha política de um projeto que não foi eleito, com graves consequências para todos. E não só é uma escolha política, como é principalmente um desenho de país. É um Brasil ainda mais injusto e predatório o que se desenha neste momento em traços rápidos.

Se o Estado promove a legalização do crime, quem defende os povos tradicionais ?

Como isso ressoa na Amazônia, no palco onde os crimes acontecem, bem longe das capitais? Como autorização ampla e irrestrita para roubar terras públicas e depois desmatá-las. E quem estiver no caminho, como os pequenos, os que supostamente deveriam ser os beneficiados pela lei, são expulsos, têm as casas e as roças incendiadas e, como já se viu, muitos são assassinados. Se o Estado promove a legalização do crime, quem os defende?

Com as atividades dos mandantes passíveis de legalização, a pistolagem está em alta. É neste contexto que chacinas como a ocorrida no município de Colniza, no noroeste do Mato Grosso, acontecem: nove trabalhadores rurais foram executados em 19 de abril, após mais de uma década sofrendo a violência de grileiros, sem que nada fosse feito. E também é este o contexto da chacina de Pau D’Arco, no sudeste do Pará, em que policiais torturaram e executaram dez trabalhadores rurais, em 24 de maio. E cadê a justiça?

Grileiros e bancada ruralista estão satisfeitos com a transformação da ilegalidade em irregularidade e, logo em seguida, regularização? Claro que não. É da sua natureza querer sempre mais.

Assim, é importante compreender outro fato. Desde que foram criadas, aprovadas e sancionadas leis que legalizam o roubo de terras públicas, os grileiros só não conseguem legalizar o grilo onde há unidades de conservação, mesmo que estas estejam só no papel. Aí não há (ainda) como produzir documento. Esta é uma das razões para a pressão cada vez mais forte para reduzir as unidades de conservação ou desprotegê-las. Uma das estratégias é ocupá-las e desmatá-las e, em seguida, pressionar para que, já que estão ocupadas e desmatadas, deixem de ser unidades de conservação e se tornem abertas para a exploração legal.

A Floresta Nacional do Jamanxim é um powerpoint da operação do governo Temer e da bancada ruralista para desproteger a Amazônia

Entre as várias pressões para a redução das unidades de conservação e o retrocesso na demarcação das terras indígenas, o caso da Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará, é quase um powerpoint sobre a operação para fragilizar a Amazônia. Primeiro, Michel Temer tentou desproteger centenas de milhares de hectares com uma medida provisória. A reação dentro e fora do país obrigou-o a retroceder. Mas como para se manter no Planalto, não necessariamente no poder, ele é refém da bancada ruralista, enviou para o Congresso um projeto de lei ainda pior: nele, 354 mil hectares deixam de ser Floresta Nacional (FLONA), uma categoria legal mais protegida, para se tornarem Área de Proteção Ambiental (APA).

O nome é bonito, mas na prática significa que 354 mil hectares de floresta amazônica se tornariam legalmente aptos a atividades como agricultura e pecuária. A medida beneficia grandes grileiros, pelo menos dois deles prefeitos de municípios da região, como mostrou reportagem de O Globo, que se apropriaram de pelo menos 44 mil hectares, uma área maior do que a do município de Curitiba. E ocuparam esta área depois que a Flona do Jamanxim foi criada: ou seja, sabendo perfeitamente que estavam cometendo crimes, mas sempre contando com os amigos no Executivo e no Congresso que, como se sabe, nunca os decepcionam. Mas o projeto de lei, obviamente, é justificado como uma ação para regularizar a situação de pequenos ocupantes de boa fé bláblábláblá.

A perversão máxima deste momento do Brasil é que tudo está acontecendo seguindo “os ritos da lei”

Recapitulando. Estava chato se arriscar a ser preso em algum momento e comprar ou usar uma série de pessoas para falsificar títulos de terra? Não há problema. Amigos no Executivo e no Congresso fazem leis para legalizar o crime. As unidades de conservação e as terras indígenas ainda assim não podem ser roubadas? Vamos ocupá-las, desmatá-las e botar uns pistoleiros cuidando que a quadrilha no governo e no Congresso tira a proteção das unidades de conservação ou impede novas demarcações de terras indígenas e tudo se resolve. Dentro da lei. E é verdade. Tudo está acontecendo seguindo os famosos “ritos da lei”. Esta é a perversão máxima.

Sempre foi dito por muitos que o problema da Amazônia era ausência do Estado. O que se identifica hoje é que não se trata apenas da ausência do Estado, mas também da forma como o Estado se faz presente – quando se faz presente. E não se trata apenas do descumprimento da lei, mas da lei que promove injustiça. O que vivemos na Amazônia, a partir de Brasília, é a descrição exata desta frase do antropólogo americano James Holston, autor de Cidadania Insurgente (Companhia das Letras): “Não apenas a lei produz ilegalidade e injustiça, mas também a ilegalidade e a injustiça produzem a lei”.

Quando o atual processo de legalização da grilagem foi iniciado no governo Lula, ele aconteceu sob o silêncio de antagonistas históricos do latifúndio e da grilagem. “As principais centrais sindicais, os principais movimentos socioterritoriais e a maioria absoluta dos intelectuais estão em silêncio, logo coniventes”, escreveu o professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira ao analisar o processo. Ao tornarem-se governo, movimentos sociais e também sindicatos calaram-se, caso do próprio MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Esta é também parte da explicação de como a hidrelétrica de Belo Monte foi imposta no Xingu depois de décadas de resistência nas quais os movimentos sociais da região de Altamira tiveram um papel decisivo.

Quando Temer e sua quadrilha tomaram conta do poder encontraram um território mais do que propício: a resistência dos movimentos sociais da região estava minada pelo projeto de conciliação de Lula

Mas o que aconteceu na região de Altamira, onde a maioria dos movimentos sociais foi cooptada pelo governo e os que não foram demoraram a acreditar no que estava acontecendo e, portanto, demoraram a agir, se repete em toda a Amazônia (e possivelmente em todo o Brasil). Quando Temer e sua quadrilha, que inclui parte do PSDB, tomaram conta do poder, depararam-se com um território mais do que propício: a resistência nas regiões mais conflitadas da Amazônia está desorganizada e rachada. O projeto de conciliação de Lula teve também o efeito de minar a resistência à grilagem e ao latifúndio na Amazônia Legal e tornar “reforma agrária” quase um palavrão. Reforma agrária, como apontam os autores de “Dono é quem desmata”, foi substituída por “regularização fundiária”. E, neste ponto, já é possível compreender o que “regularização fundiária” está significando hoje.

Como bem apontou Cândido Neto da Cunha, engenheiro agrônomo e perito agrário do INCRA no oeste do Pará desde 2006, na apresentação do livro, “as grandes obras de infraestrutura viriam acompanhadas de pretensas preocupações sociais e ambientais, e deveriam contar com diálogo e participação, envolvendo atores antagônicos em planos de compensação, mitigação e desenvolvimento”. Estabeleceu-se uma dinâmica que, em Belo Monte, por exemplo, se torna explícita: a de propositalmente confundir direitos com privilégios e, especialmente, confundir políticas públicas com favores do Empreendedor, neste caso, a Norte Energia, concessionária da hidrelétrica. “O ideário de que o acesso a direitos básicos e a políticas públicas estavam exclusivamente vinculados à execução dos empreendimentos permeou esse momento político, no qual se praticou, à exaustão, a conciliação de interesses até então vistos como inconciliáveis”, afirma Cunha.

A maior floresta tropical do mundo é defendida hoje, na quase solidão, por personagens cada vez mais frágeis e que não cessam de ser assassinados: indígenas, ribeirinhos, quilombolas e camponeses

No caminho desse processo que merece a construção de um novo conceito de perversão, há bem poucos personagens fazendo a resistência de fato e lutando pela floresta amazônica: indígenas, ribeirinhos, quilombolas e camponeses. Há socioambientalistas, pesquisadores, jornalistas, militantes de movimentos sociais e, eventualmente, defensores públicos, agentes do Ministério Público e servidores que ainda mantêm a dignidade em órgãos cada vez mais desprestigiados e/ou desfalcados como FUNAI, IBAMA, INCRA e ICMBio. Há artistas e ativistas que mobilizam-se nos momentos em que a tensão vaza e consegue finalmente alcançar a mídia nacional, às vezes mais difícil de escalar que o Everest.

Mas quem está na linha de frente, quem está na linha de morte, são os mais frágeis. Na maior parte das vezes estão lá só com o seu corpo. E acabam com ele cheio de balas. São estes que hoje defendem a maior floresta tropical do planeta em tempos de mudança climática produzida por ação humana. E a defendem quase sozinhos. E é evidente que eles não podem continuar sozinhos a defender algo que é um patrimônio de todos – e que se torna cada vez mais essencial para a sobrevivência da própria espécie humana.

O recuo de Temer e sua quadrilha com relação à Renca é uma pequena vitória, possivelmente provisória. Mas se os brasileiros quiserem lutar de fato pela Amazônia, precisam fazer muito mais. As lágrimas de Gisele Bündchen precisam se somar às lágrimas invisibilizadas dos familiares daqueles que perdem a vida defendendo a floresta. Os que morrem de um em um. É preciso produzir memória sobre cada um dos que morrem e tornar mais viva a sua luta para que não morram mais. Com cada um deles morre um pedaço da floresta. É menos um. É um mundo a menos no mundo.

A Amazônia mobiliza todo um imaginário de Brasil. Num momento de tantas dissoluções, em que o próprio Rio de Janeiro, com todas as suas simbologias de cidade maravilhosa, tornou-se o retrato mais explícito das mazelas atuais e dos conflitos históricos do país, a Amazônia como imaginário de potência talvez seja tudo o que resta de uma ideia de Brasil que gira em falso há muito mais tempo.

Num momento de tantas dissoluções, a Amazônia como imaginário de potência talvez seja tudo o que resta de uma ideia de Brasil que gira em falso há muito mais tempo

Nos tempos do ufanismo da ditadura civil-militar, o grito “A Amazônia é nossa!” serviu para legitimar a invasão de terras indígenas e o genocídio indígena. Até hoje este grito é manipulado sempre que convém àqueles que querem tornar a Amazônia não nossa, mas deles. Para isso, inventam uma suposta ameaça estrangeira, enquanto entregam a floresta para grandes mineradoras. Como a canadense Belo Sun, que hoje está instalada na Volta Grande do Xingu para o que é apresentado como a maior extração de ouro da história, ameaçando todo o ecossistema, ribeirinhos e povos indígenas de uma região já extremamente impactada por Belo Monte. Aqueles que manipulam os fios de Belo Sun apostam que as ações judiciais em curso não a impedirão de virar fato consumado, como aconteceu com Belo Monte e outros grandes empreendimentos na Amazônia.

Neste momento, a maior floresta tropical do mundo se converte de forma acelerada em propriedade privada de criminosos legalizados por aqueles que constituem o governo e o Congresso possivelmente mais corruptos da história recente. E quem a defende são justamente os povos para quem a floresta não é propriedade, mas vida.

E esta não é uma frase de efeito, mas uma distinção profunda. O que está em disputa nos acompanha desde a fundação do que se chama de Brasil, em que a propriedade privada é sacralizada e o grileiro é visto como “desbravador”. O que está em disputa é como olhar para a floresta: se como propriedade privada de poucos, se como vida para todos, humanos e não humanos. O sangue nos aponta qual é o lado que está perdendo. Resta saber de que lado cada um está.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum

Democracia sem povo

Dizem que as eleições de 2018 estão perto, mas estão muito longe: o crime é agora

Eliane Brum

El País, 21 AGO 2017

Se discute muito 2018. Se Lula (PT) será candidato ou estará preso, se o político de Facebook João Doria (PSDB) vai dar o bote decisivo no padrinho Geraldo Alckmin (PSDB), se Jair Bolsonaro (PSC por enquanto) vai conseguir aumentar seu número de votos com o discurso de extrema-direita, se Marina Silva (Rede), a que não é mais novidade, conseguirá se recuperar. Como o PMDB e o DEM se articularão para continuar no poder. Mas discutimos menos do que deveríamos o que vivemos em 2017, neste exato momento. Agora. Neste momento em que um país inteiro foi transformado em refém. Não como metáfora, não como força de expressão. Refém é o nome do que somos.

Até então só as ditaduras, aquelas com tanques e com fuzis nas ruas, haviam conseguido isso. O que acontece no Brasil é mais insidioso. O Brasil inventou a democracia sem povo. Não aquela das retóricas ou dos textos acadêmicos, mas aquela que é. O povo, para aqueles que hoje detêm o poder no Brasil, não tem a menor importância. O povo é um nada.

Com 5% de aprovação, segundo o Ibope, a menor de um presidente desde a redemocratização do país, Michel Temer (PMDB) pode fazer – faz e fará – todas as maldades e concessões que precisar para continuar onde está. Sente-se livre para não precisar dar qualquer satisfação à população. Todo o seu cálculo é evitar ser arrancado do Planalto e em algum momento despachado para a cadeia pela aceitação pelo Congresso da próxima denúncia que virá, já que da primeira ele escapou. Havia uma conversa de conteúdo mais do que suspeito, fora da agenda, à noite, na residência do presidente, e uma mala de dinheiro nas mãos de um homem de confiança de Temer – e não foi suficiente. Por que não foi suficiente? Era mais do que suficiente. Mas a justiça não está em questão. E dizer isso é o óbvio ululante de Nelson Rodrigues, chega a ser constrangedor escrever algo tão óbvio.

A presidência do Brasil hoje está nas mãos de um homem que não tem nada a perder desagradando seus eleitores, porque sequer tem eleitores. E sabe que dificilmente recuperará qualquer capital eleitoral. Sua salvação está em outro lugar. Sua salvação está nas mãos daqueles que agrada distribuindo os recursos públicos que faltam para o que é essencial e tomando decisões que ferem profundamente o Brasil e afetarão a vida dos brasileiros por décadas.

Temer goza da liberdade desesperada – e perigosa – dos que já têm pouco a perder. O que ele tem a perder depende, neste momento, do Congresso e não da população. Assim como depende de as forças econômicas promotoras do impeachment continuarem achando que ele ainda pode fazer o serviço sujo de implantar rapidamente um projeto não eleito, um projeto que provavelmente nunca seria eleito, tarefa que ele tem desempenhado com aplicação. Então, o povo que se lixe. O povo saiu da equação.

O Congresso – ou pelo menos significativa parte dele – não teme mais perder eleitores. Nem mesmo considera importante simular qualquer probidade para seus eleitores. Esse nível já foi ultrapassado. A reputação dos políticos e do Congresso chegou a um nível tão baixo, que também resta pouco, quase nada, a perder. Esta poderia ser uma preocupação, a de como recuperar a imagem, nem que seja pensando nas próximas eleições. Mas o rumo tomado foi outro. A oportunidade de saquear a nação a favor dos grupos que os sustentam e de sua própria locupletação foi tão atrativa diante de um presidente que sangra por todos os poros que para que se preocupar com o povo? Que se lixe o povo. A hora é agora.

O Congresso busca agradar àqueles a quem realmente serve – e, claro, a si mesmo. Para não deixar pontas soltas onde interessa, os deputados cuidam também de aprovar o que chamam de “reforma política”, mas uma que torne mais difícil renovar a Câmara com quem não pertença à turma. É o caso do tal “Distritão”, considerado pela maioria dos analistas a pior alternativa possível. Entre seus defeitos, está o de tornar ainda pior o que já é bem ruim: a representatividade do parlamento. Mas os deputados sabem bem por que fazem o que fazem – e o que buscam ao fazê-lo.

A Bancada Ruralista é o exemplo mais bem acabado deste momento do Congresso. Grande fiadora da permanência de Temer na presidência, com 200 deputados e 24 senadores, a também chamada “bancada do boi” coleciona vitórias numa velocidade atordoante. Quando se fala em ruralistas é preciso compreender que não está se falando dos agricultores que botam comida na mesa da população nem do agronegócio moderno, capaz de entender que a preservação do meio ambiente é um ativo fundamental para o setor.

Quem está dando as cartas no Congresso (e no Governo) é o que há de mais arcaico no setor agropecuário, um tipo que evoluiu muito pouco desde a República Velha. Essa espécie não se pauta por melhorar a produção pelo avanço tecnológico e pela recuperação das terras e pastos degradados, mas pelo que lhe parece mais fácil: avançando sobre as terras públicas, incluindo terras indígenas e unidades de preservação ambiental. O coronelismo parece já ter se infiltrado no DNA, seja herdado ou imitado.

Para avançar sobre as terras públicas de usufruto dos povos indígenas, as mais preservadas do país, os ruralistas têm cometido todo o tipo de atrocidades. Desde a posse de Temer, a bancada do boi conseguiu suspender demarcações cujos processos já estavam concluídos e se esforça para aprovar algo totalmente inconstitucional: o “marco temporal”. Por esse instrumento, só teriam direito às suas terras os povos indígenas que estavam sobre elas em 1988, quando a Constituição foi promulgada. Para ficar mais fácil de entender, é mais ou menos o seguinte: você foi expulso da sua casa por pistoleiros ou por projetos do Estado. Era, portanto, fugir ou morrer. Mas você perde o direito de voltar para a sua casa porque não estava lá naquela data. Não é só estapafúrdio. É perverso. O marco temporal deverá voltar ao STF em algum momento, mas, para agradar aos amigos ruralistas, Temer já assinou um parecer tornando o marco temporal vinculante em toda a administração federal.

Na lista de mercadorias da fatura ruralista para a manutenção de Temer no poder já foram entregues ou podem ser em muito breve barbaridades de todo o tipo: o desmonte da Funai, hoje à míngua e nas mãos de um general; a regularização de terras griladas (roubadas do patrimônio público), legalizando a rapinagem, aumentando o desmatamento e os conflitos, especialmente na Amazônia; o parcelamento de dívidas de proprietários rurais com a previdência em até 176 vezes, com o mimo adicional da redução da alíquota de contribuição; a redução em curso da proteção de centenas de milhares de hectares de unidades de conservação; mudanças nas regras do licenciamento ambiental que, se aprovadas, na prática não só abrirão a porteira para os empreendimentos dos coronéis da bancada e seus financiadores, mas tornarão o licenciamento ambiental quase inexistente (vale lembrar que a lama da Samarco aconteceu com as regras atuais e o que querem é torná-las muito mais frouxas).

Não para por aí. Os ruralistas querem bem mais: querem até o fim deste ano conseguir a permissão da venda de terras para estrangeiros e também mudar as regras sobre os agrotóxicos, o que no Brasil já é uma farra com graves consequências para a saúde de trabalhadores e de toda a população, mas os coronéis acham que tá pouco. E o objetivo de sempre, sua bandeira mais querida: botar a mão nas terras públicas de usufruto dos índios com a abominação chamada PEC 215.

A eleição de 2018, esta que ainda é uma incógnita, está perto? Me parece que está muito longe. Enquanto ela não chega, os ruralistas estão transformando o país numa ação entre amigos. Estão fazendo, sem que ninguém os freie, algo muito, mas muito grave, que afetará gerações de brasileiros que ainda nem nasceram: estão mudando o mapa do Brasil. Quando 2018 chegar, já era. Porque já é.

Há muita vida até 2018. E muita gente morrendo pela democracia sem povo que aí está. A fome e a miséria aumentando, as chacinas no campo e na floresta aumentando, os moradores de rua multiplicando-se nas calçadas (e sendo atacados, quando não mortos), os faróis repletos de pessoas tentando desesperadamente sobreviver vendendo alguma coisa, e os direitos duramente conquistados por décadas sendo destruídos um a um. Qualquer um que viva a vida de quem trabalha para se sustentar sente no dia a dia que perde. E perde rapidamente. Perde objetivamente, perde subjetivamente. Os abusos de poder estão por toda parte. E a Polícia Militar assumiu sem disfarces a ideologia de defender os grupos no poder contra o povo violentado por estes grupos.

Parece que se vive como se “ok, por agora está tudo perdido mesmo, vamos tentar melhorar o xadrez para 2018”. Um xadrez que, pelo menos para a esquerda, não está fácil. E não está fácil nem mesmo para qualquer coisa que se possa chamar de uma direita de fato. Mas a vida acontece agora. E muito está acontecendo agora. Tudo o que se viverá até a eleição e a posse dos eleitos afeta e afetará de forma profunda e permanente a vida dos brasileiros.

Este momento não é um soluço no tempo. O ano de 2017 não pode ser um entretempos, porque não está sendo para quem tem o poder para saquear o Brasil e os direitos dos brasileiros. Para estes está sendo o melhor tempo. Poder usurpar de tal forma o poder e ainda chamar de democracia?

É um outro nível este a que o Brasil chegou depois do impeachment de Dilma Rousseff, este momento em que não é preciso mais sequer manter as aparências. Para o impeachment, havia multidões nas ruas. Pode se discordar da interpretação que estas pessoas faziam do momento do país, pode se suspeitar das reais intenções dos grupos que lideravam os protestos “anticorrupção” – hoje desmoralizados pelo silêncio diante das evidências muito mais eloquentes contra Michel Temer –, mas não se pode negar que havia milhões nas ruas. Havia aparência. Havia a aparência de que a voz de parte significativa da população estava sendo ouvida mesmo que as razões para o impeachment fossem claramente insuficientes para justificá-lo.

Hoje, a população sequer está nas ruas. E torna-se muito mais assustador quando aqueles que detêm o poder chegam à conclusão de que não precisam mais sequer convencer a população ou cortejar seus eleitores. Quando descobrem que não precisam sequer se dar ao trabalho. De que podem prescindir de fazer de conta. A tarefa que precisavam que a população desempenhasse era a de ir para as ruas pedir o impeachment de Dilma Rousseff. Milhões foram, vestidos de amarelo, sob a sombra do pato da Fiesp. E agora se tornaram dispensáveis. E a parcela da esquerda que ainda podia fazer um barulho nas ruas pelo impeachment de Temer parece ter também calculado que é melhor (para seu projeto eleitoral) deixar as coisas se esgarçarem ainda mais até 2018. Se houve algum barulho quando o Congresso decidiu rejeitar a denúncia contra Temer, ele foi sepultado por um silêncio de tumba.

Ter o país sob o comando de pessoas que distorcem e afirmam o contrário do que apontam os fatos é assustador. Mas alcançamos um outro tipo de perversão, aquela que dispensa até mesmo as aparências. Pessoas que sequer se preocupam em aparentarem fazer a coisa certa. Os encontros à noite, fora da agenda, entre Michel Temer agora até mesmo com a procuradora-geral que nem assumiu ainda, as confabulações de Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal, com pessoas que poderá julgar, Aécio Neves autoconvertido no novo Eduardo Cunha. Enfim, nada mais eloquente do que uma mala de dinheiro ligada a um presidente que não é impedido de presidir.

Se Temer ainda no Planalto é a materialização do cinismo vigente no país, o candidato a substituí-lo em caso de afastamento, Rodrigo Maia (DEM), presidente da Câmara e também investigado da Lava Jato, é a troca para nada mudar, já devidamente acertada com os reais donos do poder. Mas ainda assim era preciso que isso acontecesse, para que algum limite existisse. Como não aconteceu, descemos a esse estranho mundo sem referências em que cada um está dando um jeito de se mimetizar e sobreviver.

A crise da palavra, esta que está no coração deste momento histórico, segue produzindo fantasmagorias. Como a “pacificação do país” de Michel Temer, em que a paz é só para ele e os que o mantêm no poder. Ou o argumento mais furado que uma peneira de que é melhor não tirar Temer agora por conta da “estabilidade”. Estabilidade para quem? Quem são os que estão se sentindo estáveis? Você está?

No segundo mandato interrompido de Dilma Rousseff, a palavra mais obscena era “governabilidade”. Em nome da “governabilidade”, traições profundas foram cometidas. Hoje, a obscenidade que enche a boca de tantos e consome muita tinta nos jornais é “estabilidade”. Há também os tais “sinais da economia”. Se há algo que atravessa a história do país, com especial ênfase a partir da ditadura civil-militar, é a mística dos economistas, com seus jargões, fazendo que pareça evidência científica o que seguidamente está mais próximo da astrologia.

Certa casta de economistas um dia terá uma categorização própria na história. Olhando com a necessária distância, é bem curioso o poder que exerce, ao ocupar largos espaços na mídia para legitimar o ilegitimável. Delfim Netto é talvez o personagem mais fascinante. Signatário do AI-5 e ministro de vários governos da ditadura civil-militar, inclusive liderando a pasta da Fazenda nos tempos de Médici, os mais brutais do regime, conseguiu a façanha de hoje opinar na imprensa de todos os espectros ideológicos, da direita à esquerda. Tornou-se um guru, sem que isso produza um mínimo de estranhamento ou perguntas incômodas sobre o fato de ter compactuado com uma ditadura que sequestrou, torturou e matou milhares de brasileiros. Está aí, bem tranquilo, ditando o que está certo e errado no país. Dando receitas para o momento como se estivesse num programa de culinária.

Os gritos nas redes sociais (quase) não produzem movimento. Servem mais para ilusão de que se protesta e de que se age. Uma espécie de descarga de energia que se exaure na própria bolha e nada causa. Servem, sim, para camuflar a paralisia. Nem mesmo a vergonha que se produzia com a imprensa estrangeira chamando o Brasil de “república de bananas” provoca hoje qualquer efeito concreto. Temer causa vexame em cima de vexame no exterior e já não importa. Já não há vergonha. Há uma espécie de aceitação de destino, do pior destino. E há uma desistência. E talvez algo ainda pior, que é a corrosão de qualquer sentimento de pertencer a uma comunidade. O imperativo parece ser o de cuidar da própria vida enquanto der. Mesmo sentindo que há muito já não está dando.

Fica a dica: 2018 está longe, embora muitos digam que é logo ali. Sem contar que não há nenhuma garantia de que vai melhorar depois da eleição. Mas agora, neste momento, pessoas estão morrendo mais do que antes, passando fome mais do que antes, sendo expulsas de suas casas mais do que antes, perdendo seus direitos mais do que antes. Nas periferias urbanas e rurais, aqueles que matam estão matando mais, seguidamente com a farda do Estado. A floresta amazônica está sendo mais uma vez entregue ao que há de mais arcaico na história do Brasil e está sendo destruída de forma acelerada, comprometendo qualquer futuro possível. E você, isso que se convencionou chamar de “povo”, não importa para mais nada.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum

 

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Editado por Coletivo Enconttra &